SOS Mata de Araucária - agosto/2004
Maura Campanili
Revista Terra da Gente - Campinas-SP
A mais bela e imponente árvore do Sul do Brasil ainda tem alguma chance, antes de desaparecer de nossas paisagens?
O porte e a beleza da copa da araucária denunciam, logo ao primeiro olhar, a nobreza e a importância da espécie, símbolo do estado do Paraná e presença obrigatória nas fantásticas paisagens de inverno do planalto gaúcho à Serra da Mantiqueira, em Minas Gerais. Conhecida como pinheiro-brasileiro ou pinheiro-do-Paraná, a Araucaria angustifolia é uma planta muito antiga e chegou a responder por mais de 40% das árvores existentes na chamada Floresta Ombrófila Mista, por isso mesmo conhecida co-mo Mata de Araucárias. A predominância não é gratuita: espécie pioneira, a araucária funciona co-mo uma manjedoura, cuja proteção permite o crescimento das demais espécies ao seu redor, de árvores frondosas a pequenas ervas e até fungos, musgos e líquens.
Além das plantas, os animais e mesmo parte da cultura brasileira dependem da araucária. Um dos pratos típicos das festas juninas, no Sul e Sudeste, o fruto do pinheiro - o pinhão - também está no cardápio obrigatório da fauna desse ecossistema. O pinhão é a principal fonte de alimento no inverno, quando quase não existem outras frutas disponíveis nos ambientes de clima subtropical e temperado úmido brasileiros. Por isso é procurado por ratos-do-mato, cotias, pacas, capivaras, ouriços, e muitas aves, entre as quais se destacam o papagaio-charão e a gralha-azul.
A questão é que a araucária ainda produz a melhor madeira branca, de fibra longa, da flora brasileira. É leve e ideal para vigamentos em construções e qual-quer uso em locais não expostos à chuva. Por conta disso, rapidamente se tornou importante pa-ra o desenvolvimento econômico e por um século sustentou uma exploração desenfreada, até sua exaustão. Calcula-se que, somen-te de 1930 até hoje, cerca de 100 milhões de árvores da espécie fo-ram derrubadas, aproximando a araucária da extinção. Exemplares muito antigos, matrizes importantes, de até 50 metros de altura e 2,5 metros de diâmetro, foram ao chão, sem qualquer pre-ocupação com a renovação natural daquelas matas. Junto com a araucária, costumam ser derrubadas outras madeiras de lei - como a imbuia e o cedro - também visadas pelas serrarias.
Com as áreas naturais da Mata de Araucária super reduzidas, a lista de espécies animais e vegetais ameaçadas de desaparecer não pára de aumentar. São árvores como a canela sassafrás (Ocotea pretiosa), a canela-preta (Ocotea catarineneses) e a imbuia (Ocotea porosa) e plantas como o xaxim (Alsophila setosa). Entre os animais, além da gralha-azul (Cyanocorax caeruleus), estão amea-çados o macuco (Tinamus solitarius), os inambus (gênero Crypturelus) e a jacutinga (Pipile jacutinga), entre muitos outros.
A Mata de Araucária é considerada parte do Domínio da Ma-ta Atlântica - a extensa área em todo o leste do Brasil originalmente coberta por florestas inin-terruptas. Chegou a cobrir cerca de 185.000 km2 da região Sul do Brasil, ocupando 37% do estado do Paraná, 31% de Santa Catarina e 25% do Rio Grande do Sul, em áreas contínuas, além de se encontrar dispersa ou em matas menores e descontínuas nas regiões serranas de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Menos de 100 anos de exploração desordenada reduziram essa floresta a 5% de sua área original, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Do que resta, apenas 0,7% pode ser considerado como 'áreas primitivas'.
"Embora existam plantas semelhantes no Chile, a araucária é endêmica do Brasil, ou seja, só existe aqui, o que aumenta a responsabilidade da comunidade brasileira. Atualmente, a espécie sofre pressões até dos remédios adotados para sua sobrevivência, como a legislação tão rigorosa que interdita totalmente o corte", diz o professor Flávio Zanette, do programa de pós-graduação em produção vegetal da Universidade Federal do Paraná (UFPR). "Antigamente, o agricultor ia para a roça jogando pinhões no chão. Seu neto, hoje em dia, onde vê araucária nascendo, arranca, porque se deixar crescer não poderá cortá-la. A araucária, para ele, será um problema de espaço. Nem nos quintais, na cidade, se planta mais. E qualquer espécie sem renovação, mesmo que dure 300 anos - e algumas araucárias chegam a mais de 500 - está fadada a desaparecer. Todos os anos, 1% das araucárias morrem naturalmente. Se não houver pelo menos 1% de natalidade, ela será extinta".Além da perda natural e da falta de novos indivíduos, a araucária continua a ser cortada. "A cultura madeireira, tanto no Paraná como em Santa Catarina, onde estão os principais remanescentes, ainda é muito forte", conta Clóvis Borges, diretor-executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS). "Ver-se livre de uma floresta 'inútil' para utilizar seus recursos florestais e usar a área para agricultura ou monocultura de árvores (reflorestamento) é considerado normal".
Segundo Borges, o reflorestamento de pinus (Pinus elliottii), pinheiro originário dos Estados Unidos, é a maior ameaça ao pouco que resta de araucárias no Paraná. "Atualmente, a monocultura de pinus ocupa cerca de 700 mil hectares, mas as perspectivas dos setores madeireiros - papel e celulose e móveis - é triplicar a produção nos próximos 10 a 15 anos e, para tanto, está sendo implantado um grande parque industrial que vai precisar de muita matéria prima.
"Conforme o ambientalista, as grandes empresas desistiram de comprar terras e agora fazem acordo com os proprietários, fornecendo mudas, plantando e garantindo mercado. O único foco de resistência são os adeptos da agrofloresta e agricultura orgânica, que também vêm se multiplicando. "Com isso, as grandes madeireiras que, por muito tempo, derrubaram a mata nativa, hoje, no máximo, estão induzindo os proprietários a desmatar. O que sai de madeira de araucária é de madeireiras de fundo de quintal, clandestinas, que estão comendo pelas bordas áreas já pequenas", diz. E a plantação de soja ainda é outro fator de pressão, no Paraná.Em Santa Catarina, as principais causas de desmatamento, de acordo com Miriam Prochnow, coordenadora da Rede de ONGs da Mata Atlântica (RMA), são a exploração madeireira por meio de planos de manejo autorizados por órgãos governamentais; a expansão de monoculturas de pinus e eucaliptos; a instalação de assentamentos rurais em área de floresta e a expansão de atividades agropecuárias em pequenas, médias e grandes propriedades. "Temos ainda o caso específico de ricos fragmentos identificados nas fazendas Guamirim-Gateado e Madalena, no planalto catarinense, onde é iminente o enchimento do lago da Usina Hidrelétrica Barra Grande, no rio Pelotas, na divisa com o Rio Grande do Sul. Essa barragem foi autorizada com base em um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) irregular, pois afirmava que na área do futuro lago não havia floresta. No entanto, no final de 2003, o empreendedor entrou com pedido de autorização de desmatamento de 8 mil hectares de floresta, dos quais 2.500 de mata nativa", afirma.
Apesar da situação crítica, a Mata de Araucária continua mal protegida legalmente, sendo o Parque Nacional de São Joaquim, em Santa Catarina, uma das principais áreas de preservação. Na tentativa de corrigir essa falha, em 2002, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) criou um grupo de trabalho para propor medidas de preservação e recuperação desse ecossistema em Santa Catarina. Após um levantamento de onde estão e qual a situação dos remanescentes, "a conclusão foi que a floresta ombrófila mista está no fim e, se não for criada, imediatamente, uma série de unidades de preservação, corre-se um grande risco de perder esse ecossistema", explica Miriam, uma das coordenadoras do grupo. "Os raros remanescentes florestais nativos são de dimensões reduzidas, encontram-se isolados e com evidentes alterações estruturais".
A principal recomendação do estudo foi criar um corredor ecológico ligando as áreas remanescentes de Santa Catarina e do Paraná, através de unidades de conservação de proteção integral, associadas com Áreas de Preservação Ambiental (APAs) e Áreas de Relevante Interesse Ecológico (ARIEs), onde as atividades econômicas são permitidas, mas devem seguir regras rigorosas.Assim, ainda em dezembro de 2002, quatro áreas no Paraná e três em Santa Catarina foram consideradas áreas prioritárias para criação de unidades de conservação: Água Doce, Abelardo Luz e Ponte Serrada, em Santa Catarina, e, no Paraná, Tumeiras do Oeste, Candói, Palmas e Guarapuava, a maior delas, com apenas 120 mil hectares.Segundo o biólogo João de Deus Medeiros, diretor do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), inicialmente as portarias suscitaram reações negativas em alguns setores, pois continham restrições severas ao cultivo de essências exóticas. Ao assumir o MMA, a ministra Marina Silva retirou as restrições de cultivo, mas manteve a idéia das unidades de conservação. E agora uma força tarefa, formada por técnicos dos governos federal e estaduais, universidades e ongs, trabalha contra o tempo para garantir que a proteção saia antes de as araucárias virem abaixo. Conforme João Paulo Capobianco, secretário de Biodiversidade e Florestas do MMA, até o fim do ano as unidades de conservação estarão definidas. "Mas o esforço não é só para criar áreas de preservação, e sim ter uma política para proteção do que sobrou e para recuperar a Mata de Araucária".
Criar áreas protegidas por lei, porém, não é suficiente para garantir a sobrevivência das araucárias, pois a qualidade dos poucos remanescentes está bastante comprometida. Em Santa Catarina, o único trecho onde as características estruturais da floresta ombrófila mista foram mantidas é Ponte Serrada, com 7.947 hectares. Os demais já estão muito alterados. "Em algumas matinhas praticamente não existe mais araucária. Há evidências que as principais madeiras, como imbuia, cedro e as canelas, também foram retiradas. Restou apenas o sub-bosque. Atualmente, mesmo incluindo os remanescentes comprometidos, não existe mais do que 0,5% de matas naturais desse ecossistema em Santa Catarina. No Paraná, as últimas estimativas falam em 0,8%, mas talvez esse número já esteja subestimado, pois o ritmo de desmatamento é alto", alerta Medeiros.
Para dar uma idéia da dimensão do problema, o biólogo conta que, apenas na última semana de junho, foram detectados 260 focos de desmatamento de ombrófila mista em Santa Catarina. Duas autuações em um só dia somavam 660 hectares derrubados. "Estamos diante de um impasse, pois a capacidade de reação do estado não é condizente com a situação", avalia.
Outra conseqüência do desmatamento acelerado é a perda genética das araucárias. Um estudo da UFSC, comparando os remanescentes primários de Mata de Araucária com as áreas exploradas, mostrou uma perda de mais de 50% na variabilidade genética destas. Pior, os madeireiros, ao entrar na mata, retiram as melhores árvores - maiores, mais retilíneas - e deixam para trás apenas os indivíduos inferiores. "Hoje, há locais onde até os piores espécimes também foram retirados. Por isso precisamos achar indivíduos superiores para funcionar como matrizes e usar técnicas de biotecnologia para recuperar as áreas", defende Medeiros.
A clonagem das araucárias pode acelerar essa multiplicação dos melhores indivíduos. Desde 1986, pesquisas nesse sentido são desenvolvidas pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e, agora, os primeiros resultados começam a aparecer. "Há cerca de dois anos, conseguimos a primeira frutificação de uma araucária clonada, um indivíduo de 11 anos de idade, plantado em Criciúma", comemora o professor Flávio Zanette. "Neste ano, o primeiro pinheiro macho - clonado em 1988 e plantado no Parque Cachoeira, em Araucária, na Grande Curitiba - deu as primeiras flores".
Com esses dois clones, macho e fêmea, é possível fechar o ciclo reprodutivo da espécie. Mas ainda é preciso esperar 2,5 anos entre a formação do botão, a polinização e o amadurecimento do pinhão. "Com as plantas clonadas reproduzindo, entramos na última fase da pesquisa, que consiste em fazer cruzamentos dirigidos para melhorar os descendentes. Para isso, estamos contando com apoio da Companhia Paranaense de Energia Elétrica (Copel), que nos cede as plataformas de manutenção de energia elétrica para subirmos até a copa das árvores. Vamos colher pólen em Lages, trazer para cruzar com a pinheira em Curitiba e fazer o trabalho antes realizado pelo vento", acrescenta Zanette. Toda essa manobra viabiliza casamentos antes impensáveis. Como uma agência de casamento, a biotecnologia é capaz de garantir os melhores noivos e noivas para árvores sem muita escolha em seu local de origem. Em que pese todo um passado predatório, o homem talvez assim consiga, quem sabe, reverter a erosão genética da exaurida araucária.
Uma ave como aliada
A gralha-azul, declara-da a ave símbolo do Paraná, é considerada pela cultura popular a maior aliada das matas de araucárias. Reza a lenda que a ave se alimenta dos pinhões de araucária e depois de saciar a fome, por ser previdente, enterra uma certa quantidade de pinhões em diferentes lugares, para serem comidos mais tarde, quando a safra das pinhas tiver terminado. Algumas sementes são esquecidas e germinam, dando origem aos novos pinheiros.
De fato, não por previdência, mas por hábito, a gralha-azul é um agente dispersor das sementes de araucária. Durante a atividade de alimentação, ela transporta o pinhão de uma árvore para outra e muitas vezes deixa-o cair no chão, facilitando a germinação distante da árvore-mãe. E, assim como outros corvídeos, ela também tem o hábito de armazenar alimento, esconden-do sementes em plantas epífitas e fendas em troncos de árvores que, esquecidas, germinam nesses locais.
O pinhão também atrai outros animais, graças às suas qualidades nutricionais e à frutificação de inverno, uma época de escassez em matas nativas. Cada pinheiro produz, no mínimo, 50 kg de pinhões por ano e alguns podem passar de 100 kg. Não é à toa que à sua volta se reúne a mais diversificada fauna, atrás do amido e de nutrientes essenciais à vida.
O incentivo virou crime
O corte de qualquer árvore de araucária hoje é proibido por lei, por conta de uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). As autoriza-ções de corte para espécies ameaçadas de extinção da Mata Atlântica estão suspensas enquanto não são estabelecidos critérios científicos capazes de ga-rantir o manejo sustentável dessas espécies. No entanto, essas restrições têm sido burladas através de uma Instrução Normativa do Ministério do Meio Ambiente que autoriza o corte de árvores nativas plantadas. "Quase 100% das informações de corte em Santa Catarina são de araucária e a verificação em campo mostra que a maior parte é falsa, pois são áreas naturais e não árvores plantadas", diz a coordenadora da Rede Mata Atlântica, Miriam Proch-now. Apenas no ano passado, quase um milhão de árvores de araucárias foram derrubadas legalmente, com base nesse tipo de autorização.Segundo o secretário de Biodiversidade e Florestas, João Paulo Capobianco, a idéia da resolução era boa, pois pretendia incentivar o plantio de árvores nativas. "Infelizmente, pessoas que operam na criminalidade ambiental acharam aí uma brecha para esquentar madeira. Estamos estudando uma forma de fechar essa porta, sem voltar atrás na parte boa da idéia e sem prejudicar quem plantou araucárias", comenta.
Além deste, não há outros incentivos legais para quem queira plantar ou preservar araucárias. No Paraná, o governo do Estado tem em mãos uma proposta da entidade ambientalista SPVS de dar desconto no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para empresas que investirem na conservação da espécie. "Nossa idéia é aproximar empresários de proprietários que ainda tenham áreas de araucária para remunerá-los pelo serviço ambiental que estão prestando.
Con-seguimos, no ano passado, uma experiência simbólica, onde o Grupo Positivo adotou uma propriedade de 131 hec-tares da Mata do Uru, um trecho de floresta de araucária em bom estado de conservação, no município da Lapa.
Existem várias áreas de araucárias no Paraná como esta, em propriedades privadas, cujo dono não tem recursos para manter. Nossa intenção é promover sua adoção por empresas", explica Clóvis Borges, da SPVS. Com a adoção, o proprietário da área passa a ter os recursos necessários para desenvolver um trabalho de preservação e um plano de manejo da área. "Por que não criar uma espécie de Lei Rouanet para os 0,8% que restam de florestas nativas de araucárias? São nestas pequenas e poucas áreas que ainda resta a biodiversidade desse ecossistema, ou seja, a receita do bolo que, se for perdida, não poderá mais ser reproduzida".
Para garantir que iniciativas, governamentais ou não, impeçam a extinção das araucárias, a Rede Mata Atlântica mantém a campanha SOS Araucárias, que pode ser acessada no site
www.rma.org.br/sos_araucarias/ .
Recuperação é possível Uma experiência desenvolvida pela Associação de Preservação do Meio Ambiente do Alto Vale do Itajaí (Apremavi), em Santa Catarina, mostra a viabilidade econômica de se recuperar áreas com araucárias. O projeto consiste em enriquecer florestas secundárias, plantando espécies nativas para fins econômicos. A araucária é uma das espécies chaves. Junto com ela, são plantadas: a erva mate, para produção de folhas; a bracatinga, para lenha; a espinheira santa, de uso medicinal; o palmito juçara, de uso culinário, além de espécies madeireiras como a canafístula, o cedro, a tucaneira, o angico. Também entram na lista espécies de ciclo mais longo, importantes para a biodiversidade, como a imbuia, o sassafrás e a peroba.
No futuro, os pequenos proprietários poderão usar a araucária para coleta de pinhão e até para madeira. A primeira experiência foi implantada em uma pequena propriedade de 26 hectares, em Atalanta, onde as árvores já estão crescendo. A intenção dos ambientalistas é repetir a experiência, em pequenas propriedades, na região de Abelardo Luz e Ponte Serrada, onde deverão ser criadas unidades de conservação, como uma alternativa para os proprietários.